sexta-feira, 6 de junho de 2014

No Projetor - Band of Brothers

          Há exatos 70 anos, a França foi palco de uma das maiores operações militares que o século XX abrigou. A Operação Overlord, ou o Dia D, como ficou conhecido, reuniu esforços das forças armadas inglesas, norte-americanas e canadenses com o fim de invadir a França ocupada por tropas alemãs durante a Segunda Guerra Mundial.
  Era fato conhecido do alto-comando nazista que a invasão das tropas aliadas era iminente, só não se sabia quando e por onde ela ocorreria; portanto, para que tal operação fosse bem sucedida foi montado uma intrincada rede de despiste e contra-espionagem a fim de  confundir o comando inimigo e fazê-lo acreditar que a invasão seria por outro lugar.
  Tal operação foi dividida em duas fases principais - Primeiro, a invasão de cerca de 24 mil pára-quedistas de tropas aerotransportadas que saltaram no meio da França ocupada, com objetivos variados, como preservar pontes ou estradas que seriam usadas ao longo da invasão ou atrapalhar a mobilidade de tropas nazistas através de assaltos ou destruição de pontes e estradas distintas. A segunda parte é o famoso desembarque das tropas nas praias da Normandia, imortalizada na cultura pop através do cinema e literatura.
  Dentre as várias tropas que partiram da Inglaterra encontrava-se a Easy Company, integrante do 2º Batalhão do 506º Regimento de Infantaria Pára-quedista da 101ª Divisão Aerotransportada do Exército dos Estados Unidos que, além do Dia D, participou da Batalha do Bulge, da Operação Market Garden e da invasão do Ninho da Águia, fortaleza pessoal de Hitler nos Alpes em Berchtesgaden. O regimento ficou famoso pela bravura de seus homens por terem sobrevivido em situações das mais adversas, como falta de comida, suprimentos bélicos ou mesmo de uniformes preparados para o inverno, além da constante desvantagem numérica e de sempre ser enviada para fronts onde outras tropas não haviam obtido sucesso. A Easy esteve presente em campo de batalha desde a invasão até o fim da guerra.

A Companhia Easy.
  A história da Companhia E é abordada na premiada minissérie Band of Brothers, e acompanha os jovens desde o treinamento em Toccoa, Geórgia, até o fim da guerra em 1945. A produção se destaca pelos esforços em sua ambientação e veracidade. Para reproduzir com maior fidelidade os campos de batalha da Segunda Guerra Mundial, foram necessários mais de 10 mil atores extras, cerca de 700 armas autênticas, 400 armas de borracha e cerca de 14 mil caixas de munição em cada dia de filmagem. Tanques da Segunda Guerra foram restaurados, um avião C-47 autêntico foi usado e a vila que serviu como cenário para 11 cidades europeias tinha o tamanho de nove campos de futebol americano. A produção custou cerca de US$ 125 milhões e demorou 9 meses para ser finalizada, o que lhe rendeu o título de maior e mais cara já feita para a televisão até 2010.
Eisenhower conversa com a Easy.
5 de junho de 1944.
  Baseada no livro homônimo de Stephen E. Ambrose, a série foca na relação entre os homens da Easy Company frente ao horror da guerra, e se apóia em relatos dos veteranos e nas vastas pesquisas de Ambrose para se aprofundar na psique dos soldados. Salvo pequenos erros históricos, a série é uma das reproduções mais fiéis já realizadas até hoje deste conturbado período, recebendo 6 Emmy e um Globo de Ouro por "melhor minissérie ou filme para TV". Não é necessário dizer que é obrigatória para quem quer entender um pouco mais do que se passou na invasão que acarretou o fim da guerra, mas, acima de tudo, o que se passou na mente destes soldados que, mesmo tão jovens e sem ter muita ideia do que estavam fazendo ou onde estavam se metendo, se viram arrastados pela onda assassina que marcou o século XX. 
  Teremos mais posts neste blog a fim de entender melhor a Segunda Guerra Mundial, suas causas, desdobramentos e conseqüências, mas como este ainda não é o momento, fica a indicação desta que é, para este que vos escreve, a melhor série já produzida pela HBO. A produção conta com 10 episódios de cerca de uma hora cada um, muitos deles focados na história de um dos homens da companhia e, após acompanhar tudo pelo que estes soldados passaram, cada perda de um companheiro, cada vitória, cada dia, depois de conhecer os laços de amizade que se formaram em meio a um mundo tenebroso e cruel, é impossível não se emocionar ao fim do décimo episódio.




quarta-feira, 28 de maio de 2014

A Era Vitoriana

A Rainha Vitória
          Também conhecido como Pax Britannica, o período de reinado da Rainha Vitória foi de grande prosperidade e paz para o Império Britânico. Os lucros adquiridos com a expansão do Império, o rápido crescimento industrial, a poderosa marinha mercante e o Estado solidamente estruturado garantiam o poderio britânico, que desde a derrota de Napoleão Bonaparte, em 1815, não encontrava nenhum rival capaz de ameaçar sua estabilidade e liderança internacional.
          A Lei da Grande Reforma de 1832 firmava a hegemonia burguesa diante da tradição de privilégios dos grandes proprietários. Foram adotadas medidas que eliminaram as restrições comerciais e agrícolas, a exemplo da abolição da Lei dos Cereais (1846), que, com suas elevadas taxas de importações, dava imensas vantagens  aos proprietários de terras ingleses. O livre comércio teve grande expansão. No auge da industrialização e da política colonial, a Inglaterra transformou-se em uma enorme potência mundial.
          Apesar da perseguição aos artistas que se opunham ao regime vitoriano, o período foi marcado por um grande desenvolvimento artístico e cultural na arquitetura, literatura e teatro. A arquitetura foi marcada pelo confronto entre os conceitos góticos e clássicos, com o reflorescimento do gótico sob a forma do neo-gótico; na literatura, destacaram-se os romances de George Eliot, Charles Dickens, Sir Arthur Conan Doyle, as Irmãs Brontë, Oscar Wilde, Lewis Carroll, entre outros; no teatro, o destaque foram as montagens dos trabalhos de Mary Shelley, James Joyce, George Bernand Shaw e Oscar Wilde.

Rua em Newcastle em 1888

Os Males do Fim do Século

          Apesar da fama de paz e da rigorosa moral vitoriana, eram muitas as práticas não tão morais, como a cultura do ópio. Tal prática pode parecer estranha aos olhos de hoje, porém, deve-se levar em conta que o ópio era distribuído livremente na corte e até a própria rainha Vitória o consumia misturado com cocaína na forma de pastilhas, uma vez que ambas as drogas eram receitadas medicinalmente. O ópio era consumido como uma “droga social”, tal como a nicotina nos tempos modernos.
          Os britânicos não só viam no ópio benefícios medicinais, como também benefícios econômicos, uma vez que sua exportação rendia boas quantias ao império. Em 1830, a situação crítica da sociedade chinesa fez com que fosse ordenado um combate ao ópio e, em 1839, o representante chinês Lin Hse Tsu enviou uma carta à rainha Vitória a pedir-lhe para não autorizar a comercialização de substâncias tóxicas.A rainha rejeitou o pedido, o que levou a uma guerra (1839-1842) que terminou com a rendição da China e à entrega da ilha de Hong Kong ao Reino Unido e a subsequente abertura das importações. A China não aceitou de bom grado os tratados decorrentes do fim da Guerra do Ópio, o que levou a um novo conflito entre 1856 e 1869.

A Morte

          A morte era presente na sociedade vitoriana. A expectativa de vida das classes mais altas em 1830 era de 44 anos, a dos homens de negócios era de 25 anos e a das classes trabalhadoras não ultrapassava os 22 anos de idade. Além disso, 57% das crianças das classes trabalhadoras morriam antes de completarem 5 anos. A maioria das pessoas morria em casa, gerando uma maior proximidade com a morte que criou vários rituais em seu redor. Quando alguém estava às portas da morte, era costume chamar toda a família, que se reunia à volta da cama e aguardava com expetativa as últimas palavras do moribundo. Devido à elevada mortalidade infantil e ao fato de esta ser, em muitos casos, uma das poucas ocasiões em que a família estava toda reunida, começou a surgir o costume de tirar fotografias com os falecidos. No caso das crianças, estas fotografias eram muitas vezes a única recordação que a família tinha dos seus filhos e era costume colocá-las em locais de destaque da casa.
          Havia ainda regras bastante restritas no que diz respeito ao luto. As viúvas tinham de usar vestimentas de luto durante dois anos e meio após a morte dos maridos e não podiam socializar durante esse período. A própria rainha Vitória manteve um luto de 40 anos quando o seu marido, o príncipe Alberto, faleceu.
          Esta ligação à morte estendia-se ainda ao entretenimento. Os espectáculos de espiritismo atraiam 
multidões e as sessões espíritas com a presença de médiuns estavam em voga, principalmente nas classes mais altas. A popularidade do espiritismo nesta época é atribuída ao declínio na crença  religiosa ao mesmo tempo que o prestígio da ciência aumentava. 
          A proximidade com a morte, drogas, prostituição, declínio ou mesmo negação religiosa, somado com o clima tempestuoso e sombrio tipicamente inglês teve grande impacto no modo de pensar do homem, o que refletiu fortemente na Arte. O medo da morte levou quase que organicamente a contos de terror ou desespero ambientados em uma Londres decrépita e assombrada, povoada por espíritos e construções tristes. Tais condições podem ser encontradas nas obras dos escritores da época. Drácula, o monstro de Frankenstein, Dr. Jekill, Dorian Gray, Oliver Twist e Sherlock Holmes são todos contemporâneos, e as mentes por trás destes personagens com certeza foram influenciadas pela convivência tão próxima à morte e aos males do homem.

Fleet Street - comparação: Século XIX /Dias atuais
          A Era Vitoriana é famosa pela paz e prosperidade que trouxe ao Império Britânico, tal fama pode nos levar a olhar com carinho para o passado e pensar que o mundo era um lugar melhor mas, olhando um pouco mais fundo, podemos perceber que nem tudo era tão bom. O Império ascendeu, surgiram ali algumas das mais importantes invenções da humanidade, temos clássicos excepcionais na literatura e dramaturgia que surgiram sob o cetro da Rainha Vitória, mas temos também má qualidade de vida, medo e morte rodeando tudo isso. No entanto, o homem é fruto de sua época, não fosse todo este contexto assustador talvez não tivéssemos nem metade do que este período nos proporcionou.



Interessado? Não é difícil encontrar obras ambientadas no Período Vitoriano:

Livros:
Drácula - Bram Stoker
O Médico e o Monstro - R. L. Stevenson
Frankenstein - Mary Shelley
A Volta do Parafuso - Henry James
O Morro dos Ventos Uivantes - Emily Brontë
Toda a obra referente a Sherlock Holmes - Sir Arthur Conan Doyle

Filmes:
Sweeney Todd (2007)
A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça (1999)
Drácula - de Bram Stoker (1992)
Sherlock Holmes (2009)
A mulher de preto (2012)
Orgulho e Preconceito (Várias versões)

A Era Vitoriana foi um período muito rico e interessante em vários aspectos, portanto, fique de olho para mais publicações! Em breve, seguiremos um pouco a linha histórica!

Dúvidas, sugestões, correções, por favor deixe um comentário.
Até breve!

segunda-feira, 7 de abril de 2014

"Um trem para o Oeste"

A locomotiva segue sacolejando suavemente pelos trilhos. É noite, a maioria das luzes nos corredores e nas cabines está apagada, à exceção de uma ou outra lâmpada à gás que balança suavemente, feito um pêndulo no meio do longo corredor, alongando as sombras e aprofundando a escuridão. As portas das cabines estão todas fechadas, e não há barulho algum, a não ser o do próprio trem, que segue seu caminho. Não há paradas, não há estações onde pessoas embarcam. Ele não se lembra exatamente como chegou ali. Encolhido em uma larga poltrona de veludo vermelho que poderia abrigar três pessoas, ele busca alguma referência pela janela. Mas isso de nada lhe vale. Está muito escuro lá fora, chove, e o vapor de seu corpo nublou a janela. Constantemente ele passa a manga de seu casaco pelo vidro, sem desistir de buscar algo na imensidão que se move lá fora. Ele sabe que se move, pois o trem sacoleja, e a lâmpada em sua cabine acompanha o movimento. Não há ninguém na poltrona da frente; ele está só. Seus pés estão apoiados em sua poltrona, junto ao peito, e ele segura os joelhos com um abraço apertado, que só desfaz para limpar a janela novamente. 
         Ele se sente estranho. A simples ideia de tocar o chão com os pés o assusta. Ele olha para o chão pelo vidro, depois de tê-lo limpado mais uma vez, vê os pedriscos se movendo próximos à locomotiva. Rápido. Então está mesmo indo para algum lugar, mas para onde? Seria um sonho? Ele não se lembra de como chegou ali, não se lembra de ter comprado nenhuma passagem, nem de ter que viajar... Qual é a última coisa que se lembra? Seria amnésia? Ele não se lembra de seu nome. Se sente perdido. A chuva aperta lá fora. Ele ouve o tamborilar monótono e sonolento das gotas nas janelas. Respira fundo o ar frio e toma uma decisão. Levanta-se. Ao olhar o bagageiro acima de sua poltrona encontra uma pasta. Ele a pega e senta-se. Não há mais ninguém no vagão, então a pasta só pode pertencer a ele, certo? Ele olha ao redor, como que para se certificar de que não há mesmo mais ninguém. Volta-se para a pasta de couro. Está fechada. O fecho está emperrado ou algo assim. Ele não consegue abrir. Frustrado, larga a pasta em cima da poltrona e sai da cabine. A porta de correr volta automaticamente, fechando. O corredor não é muito largo; o suficiente para duas pessoas passarem com um pouco de aperto. Ele bate na cabine em frente à sua. Nada. Sem resposta. Tenta abri-la. Trancada. Ele olha para os dois lados. Ele está no meio de algum vagão. Acima de sua cabine há uma placa oval de cobre. Há um número ali. Ele força a vista. Memoriza o número. 
        Segue em frente pelo corredor, testando todas as cabines, todas vazias e trancadas. Algumas têm suas luzes interiores acesas, mas ninguém responde. Ele continua em frente. As luzes do vagão não parecem estar funcionando muito bem. Algumas estão apagadas, outras piscam esporadicamente. Há como que uma neblina pairando no interior do vagão. Ele não consegue enxergar o fim deste, está escuro e frio. Os únicos sons que chegam aos seus ouvidos são o da chuva tamborilando no trem e o do sacolejar deste sobre os trilhos. Ele segue até chegar ao fim do vagão, sem ter encontrado ninguém no caminho. Há uma porta com um pequeno vidro quadrado. O vidro está embaçado. Como as janelas de sua cabine. Ele segura a manga do casaco e com o punho limpa o vidro, encostando a mão em concha para enxergar melhor através dele. Existe outro vagão atrelado ao seu. Ele testa a porta, esperando estar trancada como as outras, mas está aberta. A porta se abre para dentro, deixando a chuva entrar e fustigando seu rosto. Ele se apoia no portal e abre a porta do vagão adjacente. Esta se abre, igualmente para dentro. Com um salto, ele aterrissa no vagão da frente, que se encontra tão nevoento quanto o que acabou de deixar. Ele caminha com cautela. 
        Isso está muito estranho. Ninguém. Seria ele o único passageiro daquele trem? Para onde estava indo afinal? Se ao menos ele se lembrasse! A lâmpada pisca sobre sua cabeça, gerando um reflexo na placa que indica o número da cabine, chamando sua atenção. Ele olha para a placa. 1408. Impossível! Aquele era o número da sua cabine. Ele olha para trás, confuso. Tinha mudado de vagão, isso era certo. A luz dentro da cabine está acesa. Ele vê o tom sépia através do vidro borrado. Passam-se alguns segundos em que ele simplesmente encara a porta, indeciso. Então escancara-a de uma vez. Ela corre para o lado, bate na extremidade e volta. Ele a segura com a mão. Vazia. A cabine está vazia. Ele contempla seu rosto no reflexo do vidro da janela. Seus cabelos desgrenhados e o rosto barbado. Sabe que aquele é seu rosto, mas não lembrava que ele fosse assim. 
        Adentra a cabine. A pasta continua jogada em cima do assento. Ele a pega novamente. Analisa o fecho. Força-o um pouco e a pasta se abre. Mais hesitação. Finalmente decide por vasculhar o conteúdo. Dentro há algumas folhas de papel velhas e corroídas pelo tempo nas bordas. Há algo escrito nelas. Símbolos organizados em linhas paralelas. Padrões de cinco linhas. Ele reconhece aqueles padrões, mas não sabe dizer o que são. Suspira. O que está havendo com sua mente? Apóia as folhas no colo e fica olhando para a primeira delas. Seus dedos tamborilam sobre a perna impacientes. 
        Não...
        Não é impaciência. 
        É um movimento coordenado... ele reconhece os símbolos. Aquilo é uma partitura! Uma melodia.                
Ele se lembra. 
Cantarola baixo. Sim. Lembra-se. 
Alguém cantando aquela música pra ele...? 
A lembrança vem acompanhada de um sentimento bom. Conforto. Ele sorri. Olha para a pasta novamente. Será que há algo mais ali dentro? Ele vasculha. Vira de cabeça para baixo. Algo cai em sua mão. Um colar. Um fino pingente de vidro em uma corrente de prata. Translúcido e brilhante. É como se o pingente tivesse sua própria luz, se é que isso é possível. Talvez ele só esteja refletindo a luz pálida e amarelada... Há algo sobre aquele pingente. Algo que ele não se lembra, mas também lhe trás conforto. Ele abre o fecho e pendura o colar no pescoço. Recosta-se na poltrona e fecha os olhos. 
Neste momento, o trem pára com um solavanco. 
Ele se curva na poltrona e olha para fora. Está escuro demais para se enxergar algo. Ele se levanta e sai pela porta, assim que a cruza se lembra da pasta, volta, fecha-a e sai novamente; seja lá o que fosse que ele achara na pasta, pertencia a ele. 
        Ao desembarcar na plataforma coberta pela fumaça da locomotiva e pela nevoa da noite ele não sabe exatamente o que fazer; não há placas ou sinais de identificação nos pilares. É tudo muito limpo, mas há ali um ar de abandono, como se ninguém passasse por ali há muito, muito tempo. Ele se vira para o outro lado e caminha até a borda. Há outro trilho ali por onde a locomotiva provavelmente faria o caminho inverso àquele por onde ele viera. O trem à suas costas apita e começa a se mover. Ele se vira e observa-o partir. O dia começa a clarear em uma manhã cinza e nevoenta. O céu passa do negro da noite a um cinza-chumbo. Ele percebe que não chove mais, mas vários flocos de neve flutuam calmamente até tocarem o chão e sumirem em um mar branco. Ele caminha ao longo da plataforma e encontra uma escada para descer, entre os dois trilhos. Sem muita certeza, segue caminhando e cruza a linha por onde viera seu trem. Há uma floresta ao longe, ele segue em sua direção. Talvez haja uma vila ou povoado onde ele possa pedir informações. 
        Ele divisa uma figura entre as árvores. Isso o anima. Finalmente uma alma viva naquele lugar, naquele sonho estranho. Ele aperta o passo em direção à figura ao longe. Aos poucos consegue discernir melhor o contorno e logo, as feições. Uma mulher. Vestida de branco, com longos cabelos negros que cacheiam suavemente às suas costas. Seu vestido longo arrasta as pontas no chão, mesclando a mulher ao ambiente gelado enquanto ela se move calmamente pela linha do horizonte. 
Ele estaca por um momento. 
Pensou ter visto asas às suas costas, mas eram somente galhos de algumas árvores secas atrás dela que causaram uma estranha ilusão de ótica... 
Ou talvez não fosse? 
Mesmo assim ele decide seguir em frente. 
Conforme se aproxima, percebe que a mulher está descalça sobre a neve. Caminhando calmamente em uma linha reta, seguindo para a esquerda dele, ao visto, sem tê-lo notado. Ele aperta o passo e, quando percebe, está correndo em direção à misteriosa mulher de branco. Quando está quase alcançando, ela finalmente o nota. 
E olha para ele. 
Seus olhos são de um azul muito suave, com um olhar ao mesmo tempo tenro e gélido. Seus lábios rosados não lhe traem nenhum sentimento. Sua pele é muito clara, contrastando com o cabelo negro, enfeitado por pequenas flores e flocos de neve, como estrelas na noite escura. 
Ele estaca, sem saber o que dizer agora que finalmente alcançou-a. 
Ela olha para ele por mais alguns instantes e estende-lhe a mão. 
Há longas fitas brancas amarradas em seus pulsos, descendo entrelaçadas até as mãos, as pontas caindo soltas e esvoaçando ao vento. Ele olha para a mão estendida e em seguida para seus olhos. 
Os longos cabelos dançam ao vento, jogando vários fios para o rosto da garota, velando seus grandes olhos azuis.
Ela sorri. 
E ele compreende. Tudo.
Não há mais incerteza em seu olhar ou em seus movimentos, ele pega a mão que ela lhe oferecera e juntos eles seguem pela floresta coberta de neve em meio ao dia que amanhece, e logo ele ouve, ao longe, o rugido do mar quebrando na costa.




sexta-feira, 28 de março de 2014

"Oceano"

Podes sentir as ondas quebrando ao longe? Podes ouvir o rugido do mar profundo? Sua canção fantasmagórica soando na noite que se cerra sobre nós? Feche seus olhos, preste atenção... há algo que canta para ti. Uma voz doce e quente, como os dias agradáveis e sonolentos de verão, onde você dorme preguiçosamente no meio do dia. Mas, espere!, não sorria assim... não percebes?, há também uma sensação estranha que acompanha algumas notas da melodia; algo que cai como gotas de chuva em um amanhecer de inverno, enregelando seus ossos e te fazendo desejar estar em seu lar novamente, sem que você se lembre do motivo que o tirou de láOuça com atenção... 
Sim, o que você ouve é o coração do oceano, o espírito do mar, que seduziu e enlouqueceu marinheiros sem conta, levando-os a fins cruéis ou sutis em histórias há muito perdidas ou esquecidas. 
Há algo ali, meu amigo. Escute o que lhe diz este velho. Há muito mais nas coisas do que você pode imaginar e, quando falamos do Mar... bem... com certeza há nele muito mais do que poderíamos desejar... 
Sabe?, quando eu era jovem, jovem assim como sois agora - ora, não me olhe com esta cara! - meu pai contava-me um conto, uma história que o Tempo lhe contou quando este ainda era jovem... um conto sobre o Mar. 
Houve uma garota. Sim, sempre há, não é mesmo? Uma garota bonita e meiga? Sim, e o que seria mais provável em histórias deste tipo? Exato! Mas, bem, esta não é uma história de amor comum. Não como você pode esperar, pelo menos. Ela começa - ou termina - em uma noite exatamente como esta, em uma praia muito parecida com esta, há muito, muito tempo. 
O céu está chumbo e, embora seja lua-cheia, o único sinal de que existe uma lua é uma leve claridade em meio às nuvens escuras. O mar está calmo, sem ondas, só o silêncio de sua canção preenche a noite. É outono, e um vento muito frio varre a costa, no entanto, ela não sente frio; está parada em pé na areia cinza, somente com seu longo vestido, branco feito as estrelas. Ela contempla o oceano com seus grandes olhos, translúcidos de tão claros, como a água do rio mais límpido. Seu tom acinzentado parece capturar o espírito da noite. O vento brinca com seus cabelos, negros como a noite, como se com ela flertasse timidamente. Ela ouve o rugido do Mar ao longe, como se cantasse para ela uma canção há muito esquecida. Há algo de familiar e acolhedor em sua melodia e ela se move lentamente em direção ao mar, quase que inconscientemente. Seus pés descalços abandonando suaves pegadas na areia fina. 
Lentamente ele segue em frente. O olhar pousado no horizonte e, quando se dá conta de si, a água já banha os seus pés. Não está fria como você poderia imaginar que estivesse em uma noite gélida dessas, não para aquela garota pelo menos. Não, para ela a água do mar lhe chega morna e sonolenta. Ela olha para o vasto oceano à sua frente, como se lhe dirigisse uma pergunta, ou esperasse uma resposta. Ela o acha belo. Sempre achara. A água morna parece um convite, como alguém que lhe estende a mão para se aproximar do fogo e se livrar do frio. Decide seguir mais um pouco, que mal há nisso? Só mais um pouco. 
A água cobre seus tornozelos, molhando a barra de seu longo vestido. Ela segue. Passa a ponta dos dedos pela superfície da água. Seu vestido, que antes flutuava, começa a afundar devido ao peso. Mas não é um peso tão grande, não... Não o suficiente para ela não conseguir mais andar, nada que a faça parar. 
Em frente ela vai. Seus longos cabelos deslizando sobre as águas. Aos poucos ela afunda, sem nadar. Apenas segue. Apenas se entrega, afinal, não há o que temer. O Oceano é tão belo, e parece recebê-la com tanta ternura; ela a envolve e a protege, cantando em seus ouvidos feito um pai que nina o filho nos braços. A sensação é de estar em casa, de voltar ao lar, de onde nunca deveria ter saído. 
Ninguém sabe dizer quem foi ela ao certo. Alguns dizem que ela perdeu seu amor para o mar, e que este um dia voltou para buscá-la, outros, que ela na verdade rendeu seu amor ao Oceano e se entregou a ele de corpo e alma; ou ainda que sempre pertenceu ao Mar de alguma forma, e sempre desejou voltar para casa. 
Você vai me perguntar se ela se matou, se tinha uma vida triste e simplesmente decidiu ir embora. Podes pensar assim se quiser: as pessoas fazem isso, de fato... mas se perguntar a este velho que vos fala ele vai te responder que não. 
Não, ela não se matou. E arrisco dizer que nem ao menos morreu. O Mundo é um lugar muito estranho, sabe? Muito mais estranho do que gostaríamos de aceitar, e muito mais estranho do que as pessoas costumam pensar. Eu já vi muita coisa deste Mundo, sabe? Ela vive lá... de alguma forma... no meio das ondas... guiando marinheiros para os seus lares ou fazendo-os enlouquecer de amor. Ela está lá, cantando sua canção... 
Sabe?, se você sentar quieto na beira do Mar em uma noite fria de Outono como esta, você pode ouvir sua voz cantando para ti uma bela canção de ninar... 
...ou uma assustadora canção de amor.  
Você pode sentir a mão dela em seus cabelos, acariciando sua pele? Preste atenção... você a ouve? Você sente o arrepio na espinha que a voz dela lhe causa?, ou o frio no peito que o seu toque lhe traz?  
O que? ...eu? 
Ah, sim... 
Sim, pelos deuses... 
Pelos deuses do Céu e do Mar... 
...eu a ouço. E se... 
...se os ventos vierem a me trair, 
um dia hei de vê-la.

quarta-feira, 12 de março de 2014

"Lá fora"

            Primeiro a luz.
Depois, o som.
Som que explode ao longe, fazendo o velho saltar em sua macia cadeira perto do fogo.  Ele solta o livro que estivera lendo e aproxima-se da grande janela, as pesadas cortinas vermelhas dançando ao sabor do vento, feito língua de répteis famintos. Ele olha pela janela, sentindo os primeiros pingos de chuva em sua pele. Ao fechá-la, finda-se o barulho e o balançar das cortinas. Os répteis estão mortos.
Através do vidro ele pode ver a chuva se aproximando sobre a velha floresta, com seus pinheiros sacolejando como o mar, e aos poucos se aproximar de sua janela, os pingos pipocando aos poucos contra o vidro e escorrendo lentamente. Ele fecha as cortinas com um movimento lento, mas algo impede sua mão. Seria um pressentimento? Alguma paranoia? O que significa esse calafrio na espinha? Há algo estranho no balançar dos pinheiros, longe na noite escura banhada pela chuva... ou é só maluquice de um velho? Um roçar em sua perna causa um sobressalto. Ele olha para baixo e encontra seu velho companheiro. O gato. Tibles. Dá de ombros e fecha a cortina de vez. Não sem antes dar uma última espiada pela cortina.
Ele volta para perto da lareira. O fogo morre aos poucos. Ele seleciona um pedaço aleatório de lenha e arremessa-o nas brasas, que chiam e se espalham pelo ar antes que o fogo ganhe uma nova sobrevida.
O gato mia. O velho fecha o livro que antes estivera lendo, apanha seu lampião e desce as escadas o mais rápido que seus músculos cansados permitem. Tibles passa por ele, quase derrubando-o das escadas, e espera no patamar lá em baixo.
– Calma, meu caro! Já estou indo.
Após descer as escadas, ele se dirige para a cozinha. Passando pela janela da sala, algo chama sua atenção. Uma sombra incomum do lado de fora. Há algo de estranho nesta noite, nesta tempestade. Tibles está parado no meio da sala. Fitando a janela. O velho segue em direção à porta, e se certifica de que está fechada. A sombra permanece ali. Talvez seja só uma árvore. Uma árvore alta no meio de árvores altas. Faz muito sentido afinal de contas. É só a noite te pregando peças. Somente seus olhos tentando entender as coisas. Mesmo assim, ele tranca a porta e a janela.
Tibles permanece sentado no meio da sala até que o velho já tenha alcançado a soleira da cozinha, então, com um ronronar, segue-o até lá e pára ao lado de sua vasilha. O homem derrama leite aos poucos e o gato começa a beber, lentamente.
Ele se senta ao balcão e decide que também precisa de um lanche antes de ir dormir. Passa então a montar vagarosamente um sanduíche e a preparar um café. Já está na segunda mordida e no meio do primeiro gole do café quando ouve um estalar vindo da sala. Ele pára no meio do gole, levando a caneca vagarosamente ao tampo do balcão. Tibles ergue as orelhas e espicha a calda. Atento. Ele se levanta de vagar e segue em direção à sala, com seu velho lampião na mão que treme. Ao chegar à sala, nada. “Devo estar ficando louco”... ao se virar para voltar ao seu lanche, Tibles começa a rosnar. De repente algo. Algo em sua visão periférica enquanto ele observar o gato. Uma sombra. Rápido. Somente uma fração de segundo e se foi. Mas é o suficiente. Tibles sai correndo e sobe as escadas. Ele decide que é melhor acompanhar o gato andar acima. Suas mãos tremem, seus ouvidos zunem. Ele sobe o mais rápido que pode. Um frio pavor começa a se apoderar de seu corpo, algo que ele nunca sentiu na vida, algo do qual nunca ouvira falar. Algo lá fora.
Ele se tranca no quarto e se encolhe num canto feito uma criança assustada. A chuva tamborila forte nas janelas. O fogo na lareira morre. Tibles está encolhido debaixo da cama e ele pode ouvir o ranger dos próprios dentes. O relógio na sala soa lentamente o seu pêndulo. Tic... toc... tic... toc... mais lento que o seu batimento cardíaco. Ele treme. Frio. Um frio sobrenatural. Puxa as cobertas da cama, e se enrola o melhor que pode, mas isso não ajuda.
Ele sente mais do que ouve... a porta da sala... abrindo lentamente... algo rastejando para dentro... a noite entrando em seu abrigo. O fogo em sua lareira, cada vez mais fraco. Silêncio. Somente o barulho de seu coração acelerado. O relógio não soa mais... em vez disso, algo pior... um som suave... lento. Cada vez mais próximo. Subindo as escadas. Pára. Tibles rosna sob a cama. Está ali. Do outro lado da porta. Aquilo. Vindo de fora. Ele não tem mais controle de seu corpo, o frio é tão profundo que ele treme convulsivamente.
O trinco na porta. Há algo errado com ele. Ele gira suavemente. De repente um estalar. Ele geme silenciosamente. O ranger da porta ao se abrir acompanha o gelo em sua espinha.
A porta se abre vagarosamente. Ele está paralisado. Não pode se mover, não pode fugir, não pode gritar, até mesmo isso é reprimido. Por Aquilo. Ali. Na porta. A Noite Que Entra. O Vindo de Fora. Ele O vê. E não compreende. Aquela escuridão que entra vagarosamente, apagando sua luz. Não. Aquilo não é possível. Um temor ancestral e frio toma conta de seu corpo. Paralisante. E então ele o vê como ele realmente é.
Inconcebível.
Inimaginável.
O derradeiro impulso de seu cérebro é finalmente processado.
Ele grita.
Mas o som só pode ter vindo do fundo de sua alma imortal.

Pois seu cérebro desistira de entender.


domingo, 23 de fevereiro de 2014

No projetor - Sherlock

Foi por acaso que eu conheci o célebre morador do número 221B da Baker Street, se é que coisas como o acaso existem. Eu tinha uns 12 anos e estava brincando no carro do meu pai quando encontrei um exemplar de “O Sígno dos Quatro” no porta-luvas. O livro foi esquecido ali pelo meu tio, e quando ele veio buscá-lo eu já havia me apaixonado pelo personagem fantástico que é o Sr. Holmes, pela amizade fiel de John Watson e pelo aspecto quase sobrenatural da Londres do século XIX.
Posso me arriscar a dizer que esta obra influenciou de forma definitiva o meu futuro amor pela leitura, e até mesmo por história, afinal, este período 1890-1920 é um dos meus favoritos. O início do século 20 foi conturbado e abrupto, às vezes se confundindo com o passado, às vezes correndo para o futuro.
Edição que me apresentou
à literatura
Em um período bem curto eu li toda a obra publicada por Sir Arthur Conan Doyle referente ao Sr. Sherlock Holmes, e até hoje obras passadas na Londres de 1890 me atraem e cativam. Ao longo dos anos, fui acompanhando as adaptações cinematográficas ou para TV destes personagens tão queridos: um filme antigo, com Basil Rathbone no papel principal e até mesmo uma adaptação engraçaralha de Jô Soares, com seu “Xangô de Baker Street”, passando por “O Enígma da Pirâmide”, filme de 1985. Mais recentemente fomos apresentados a Robert Downey Jr. e seu Sherlock no que, pra mim, é um bom filme, mas que nada leva do personagem original. Mas nenhum deles chamou tanto minha atenção e me deixou tão besta na frente da TV quanto a série Sherlock, produzida pela British Broadcasting Corporation, a BBC.
Esta série nos apresenta a John H. Watson (Martin Freeman), veterano de guerra que volta a Londres e busca alguém com quem possa dividir o aluguel. Através de um amigo em comum, John é levado a conhecer Sherlock Holmes (Benedict Cumberbatch), que aluga sozinho um flat na Baker Street e está disposto a dividir as contas. John encontra o notável Sherlock em um laboratório onde este faz testes químicos em um microscópio e os dois acertam as coisas para que John se mude em breve. John acaba se envolvendo nos casos de consultoria que Sherlock presta à Scotland Yard e, ao ver a incrível capacidade dedutiva de Holmes decide transcrever suas aventuras junto ao detetive.
Até aí, nada de novo, certo? Certo, muito fiel aos livros, a não ser pelo fato de que a série se passa nos dias atuais.
          Esse aspecto da série me deixou com o pé atrás, e ignorei-a por um tempo, mas quando finalmente dei uma chance à adaptação, me surpreendi com a qualidade e o respeito pelos personagens. É excelente.
Todos os aspectos da personalidade de Sherlock estão presentes. É como se alguém tivesse se perguntado “Como alguém como Sherlock Holmes seria hoje em dia?” e seguido a partir daí. Sherlock é apresentado como alguém que não se importa com os convívios e as amarras sociais, quase beirando a sociopatia, mas esse traço de sua personalidade é bem medido pela sua educação, o que resulta em um humor ácido e sincero, que, além de ser muito justo ao Holmes de Doyle que preza a lógica e a verdade acima de tudo, torna a série muito divertida.
Aliás, em questão de diversão, Sherlock, mesmo se tratando de uma série policial/drama é muito divertida! A relação Sherlock-Watson é uma das melhores coisas desenvolvidas aqui, talvez por causa da escolha de elenco, pois Freeman é um excelente ator, e consegue reagir às situações absurdas em que é colocado de uma maneira sincera, como se tentasse manter a sanidade frente aquilo, como quando Holmes surge todo sujo de sangue e com um arpão na mão, dizendo que estava fazendo experimentos com um porco ou quando John descobre que Sherlock não possui nenhum conhecimento de astronomia, ignorando, inclusive, o fato de a Terra girar em torno do Sol. Ambas as situações descritas nos livros.
John muitas vezes acaba servindo como relações-públicas ou mesmo consciência social para Holmes, devido aos seus hábitos solitários do detetive, mas a amizade dos dois é muito bem desenvolvida, e conseguimos perceber perfeitamente o porquê de duas pessoas tão diferentes serem amigas.
Martin Freeman e Benedict Cumberbatch
como Watson e Sherlock.
Benedict Cumberbatch está sensacional no papel e, tanto fisicamente quanto em sua atuação, consegue nos fazer acreditar que o que Sherlock Holmes faz não é sobrenatural nem forçado, mas que se trata tudo de uma questão de observação, e suas conversas com Watson servem quase como uma lição para o espectador e o mais divertido é que, ao acompanhar os mistérios, nos pegamos tentando descobrir o final, o que eu só consegui fazer em um episódio. Pois mesmo sendo baseadas nos contos originais, as histórias são originais, apesar de prestar uma bela homenagem à obra de Doyle. As tramas são muito bem amarradas, mas tudo o que Sherlock vê nós também vemos. Não há nenhuma informação oculta que só surge no final.
Eu amo o personagem e poderia escrever textos e mais textos dizendo o quanto esta adaptação é boa, mas no fim das contas, o que eu quero dizer é: Assistam! Quer você goste ou não do personagem ou dos livros. É uma das melhores séries da atualidade e com certeza vale a pena! A produção conta com grandes nomes como Steven Moffat, um dos homens por trás do aclamado Dr. Who, além de contar com Cumberbatch, que vem se mostrando um ator excepcional, já tendo atuado de forma brilhante em fitas como “Cavalo de Guerra”, “O espião que sabia de mais”, além de ícones do mundo nerd como “Além da escuridão – Star Trek” e “A Desolação de Smaug”; e Martin Freeman, que nos deu de presente a melhor representação possível de Bilbo Bolseiro nos cinemas.

No momento desta publicação, Sherlock conta com 3 temporadas com três episódios cada, e a quarta já foi confirmada. São poucos episódios, ainda que tenham sua duração média de 90min.
Sherlock Holmes foi um personagem tão crível à época de sua criação por Conan Doyle que as pessoas endereçavam cartas ao 221B - Baker Street com seus mistérios e casos para Holmes e Watson, e esta série da BBC me fez acreditar que este homem poderia existir realmente.

Sherlock Holmes.

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

No fundo da gaveta - "Lá fora..."


          Primeiro a luz.
          Depois, o som.
          Som que explode ao longe, fazendo o velho saltar em sua macia cadeira perto do fogo.  Ele solta o livro que estivera lendo e aproxima-se da grande janela, as pesadas cortinas vermelhas dançando ao sabor do vento, feito língua de répteis famintos. Ele olha pela janela, sentindo os primeiros pingos de chuva em sua pele. Ao fechá-la, finda-se o barulho e o balançar das cortinas. Os répteis estão mortos.
          Através do vidro ele pode ver a chuva se aproximando sobre a velha floresta, com seus pinheiros sacolejando como o mar, e aos poucos se aproximar de sua janela, os pingos pipocando aos poucos contra o vidro e escorrendo lentamente. Ele fecha as cortinas com um movimento lento, mas algo impede sua mão. Seria um pressentimento? Alguma paranóia? O que significa esse calafrio na espinha? Há algo estranho no balançar dos pinheiros, longe na noite escura banhada pela chuva... ou é só maluquice de um velho? Um roçar em sua perna causa um sobressalto. Ele olha para baixo e encontra seu velho companheiro. O gato. Tibles. Dá de ombros e fecha a cortina de vez. Não sem antes dar uma última espiada pela cortina.
          Ele volta para perto da lareira. O fogo morre aos poucos. Ele seleciona um pedaço aleatório de lenha e arremessa-o nas brasas, que chiam e se espalham pelo ar antes que o fogo ganhe uma nova sobrevida.
          O gato mia. O velho fecha o livro que antes estivera lendo, apanha seu lampião e desce as escadas o mais rápido que seus músculos cansados permitem. Tibles passa por ele, quase derrubando-o das escadas, e espera no patamar lá em baixo.
          – Calma, meu caro! Já estou indo.
          Após descer as escadas, ele se dirige para a cozinha. Passando pela janela da sala, algo chama sua atenção. Uma sombra incomum do lado de fora. Há algo de estranho nesta noite, nesta tempestade. Tibles está parado no meio da sala. Fitando a janela. O velho segue em direção à porta, e se certifica de que está fechada. A sombra permanece ali. Talvez seja só uma árvore. Uma árvore alta no meio de árvores altas. Faz muito sentido afinal de contas. É só a noite te pregando peças. Somente seus olhos tentando entender as coisas. Mesmo assim, ele tranca a porta e a janela.
          Tibles permanece sentado no meio da sala até que o velho já tenha alcançado a soleira da cozinha, então, com um ronronar, segue-o até lá e pára ao lado de sua vasilha. O homem derrama leite aos poucos e o gato começa a beber, lentamente.
          Ele se senta ao balcão e decide que também precisa de um lanche antes de ir dormir. Passa então a montar vagarosamente um sanduíche e a preparar um café. Já está na segunda mordida e no meio do primeiro gole do café quando ouve um estalar vindo da sala. Ele pára no meio do gole, levando a caneca vagarosamente ao tampo do balcão. Tibles ergue as orelhas e espicha a calda. Atento. Ele se levanta de vagar e segue em direção à sala, com seu velho lampião na mão que treme. Ao chegar à sala, nada. “Devo estar ficando louco”... ao se virar para voltar ao seu lanche, Tibles começa a rosnar. De repente algo. Algo em sua visão periférica enquanto ele observar o gato. Uma sombra. Rápido. Somente uma fração de segundo e se foi. Mas é o suficiente. Tibles sai correndo e sobe as escadas. Ele decide que é melhor acompanhar o gato andar acima. Suas mãos tremem, seus ouvidos zunem. Ele sobe o mais rápido que pode. Um frio pavor começa a se apoderar de seu corpo, algo que ele nunca sentiu na vida, algo do qual nunca ouvira falar. Algo lá fora.
          Ele se tranca no quarto e se encolhe num canto feito uma criança assustada. A chuva tamborila forte nas janelas. O fogo na lareira morre. Tibles está encolhido debaixo da cama e ele pode ouvir o ranger dos próprios dentes. O relógio na sala soa lentamente o seu pêndulo. Tic... toc... tic... toc... mais lento que o seu batimento cardíaco. Ele treme. Frio. Um frio sobrenatural. Puxa as cobertas da cama, e se enrola o melhor que pode, mas isso não ajuda.
          Ele sente mais do que ouve... a porta da sala... abrindo lentamente... algo rastejando para dentro... a noite entrando em seu abrigo. O fogo em sua lareira, cada vez mais fraco. Silêncio. Somente o barulho de seu coração acelerado. O relógio não soa mais... em vez disso, algo pior... um som suave... lento. Cada vez mais próximo. Subindo as escadas. Pára. Tibles rosna sob a cama. Está ali. Do outro lado da porta. Aquilo. Vindo de fora. Ele não tem mais controle de seu corpo, o frio é tão profundo que ele treme convulsivamente.
          O trinco na porta. Há algo errado com ele. Ele gira suavemente. De repente um estalar. Ele geme silenciosamente. O ranger da porta ao se abrir acompanha o gelo em sua espinha.
          A porta se abre vagarosamente. Ele está paralisado. Não pode se mover, não pode fugir, não pode gritar, até mesmo isso é reprimido. Por Aquilo. Ali. Na porta. A Noite Que Entra. O Vindo de Fora. Ele O vê. E não compreende. Aquela escuridão que entra vagarosamente, apagando sua luz. Não. Aquilo não é possível. Um temor ancestral e frio toma conta de seu corpo. Paralisante. E então ele o vê como ele realmente é.
Inconcebível.
Inimaginável.
O derradeiro impulso de seu cérebro é finalmente processado.
Ele grita.
Mas o som só pode ter vindo do fundo de sua alma imortal.
Pois seu cérebro desistira de entender.